Lembranças

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Todos lembramos de coisas agradáveis e desagradáveis em nossa vida: conquistas, decepções, alegrias e sofrimentos. Mas o que fazer com estas coisas?  Podemos relembrar com prazer algo bom que nos ocorreu ou reviver a dor de alguma tristeza, mas em quê ambas seriam úteis? É isto que tentarei refletir brevemente neste post.

Um dos trechos mais interessantes e instigadores para mim em Além do planeta silencioso, de C. S. Lewis (primeiro livro da trilogia espacial de Ransom), é o excerto em que Ransom e Hyoi conversam sobre o prazer estético (o da obra de arte) e o estendem ao nível da lembrança de qualquer prazer. Ransom não consegue entender como os Hrossa (raça de Hyoi) conseguem se contentar em lembrar de algo prazeroso e pergunta:


"– E ele se contenta de apenas se lembrar do prazer?
– Isto é o mesmo que dizer 'eu me contento de apenas comer minha comida'.
– Não entendo.
– Um prazer só atinge sua plenitude quando ele é lembrado. Você está falando, Hme [homem], como se o prazer fosse uma coisa e a lembrança outra. Mas não é assim, eles são a mesma coisa. Os 'séroni' poderiam dizê-lo melhor do que eu o estou fazendo, mas não melhor do que se eu o dissesse num poema. O que você chama de recordar é a última fase do prazer, como o 'crah' é a última parte de um poema. Quando você e eu nos encontramos, tudo se passou num instante, não foi nada. Agora, à medida que nós nos lembramos do encontro, ele vai se transformando em alguma coisa. Mas ainda sabemos muito pouco a respeito deste encontro. O que ele será quando eu recordá-lo ao me deitar para morrer, o que ele significa para mim todos estes dias até lá, isto, sim, é o verdadeiro encontro. O outro é só o começo dele. Você me disse que vocês têm poetas no seu mundo: eles não ensinam isto?" (Além do planeta silencioso, C. S. Lewis).

No trecho, Hyoi tenta mostrar a Ransom que a lembrança faz parte do prazer como algo intrínseco a ele e não externo, ao mesmo tempo, que é um processo que tem um início, mas que provavelmente não terá um fim determinado. O fim não pode ser determinado porque a lembrança poderá se prolongar e desenvolver este prazer muito além do que se espera dele.

Provavelmente, coisas mais marcantes e profundas como a amizade, o amor Eros, uma obra de arte de alto nível, momentos preciosos com familiares ou um acontecimento excepcional em nossas vidas se prolongarão em nossa memória como prazer por mais tempo do que algo mais corriqueiro. Ainda assim, é difícil não perceber que, algumas vezes, pequenos prazeres banais nos retornam à mente como lembrança prazerosa, por mais bobos que sejam. O importante, que quero deixar pontuado aqui, é que a recordação pode prolongar algo prazeroso que nos aconteceu nos trazendo de volta a sensação de alegria que tivemos, ao mesmo tempo que nos traz uma alegria nova, modificada, transformada em outra alegria que não a primeira, mas ainda assim fonte de prazer.

Do mesmo modo, as tristezas tem esse poder. C. S. Lewis não aborda isto no trecho, mas em outro livro sim. Em A anatomia de uma dor, o mestre desnuda seus questionamentos e sofrimentos pela perda de sua amada, Joy. Em um trecho particularmente triste, ele nos informa de sua incapacidade de lembrar com exatidão do rosto dela, mesmo através dos retratos, que para ele não conseguiam transmitir com exatidão a face da amada. Ao mesmo tempo, a voz de Joy ainda era uma lembrança viva e forte e sempre que lembrava dela as lágrimas lhe corriam a face...

Mas o que fazer com essas recordações? Acho que sobre o prazer, não há qualquer problema de entendimento: lembrar algo prazeroso sempre é bom (a menos que a ideia de prazer e de bem sejam corrompidas, mas não lidarei com isto aqui). Agora, em relação ao sofrimento, normalmente, temos duas reações: evitar a todo custo lembrar-se; ou relembrar com muita frequência o ocorrido. Em consequência da primeira, temos a perda de experiência (no sentido de sabedoria de vida); e em consequência da segunda, temos a amargura e descrença.

Ora, a escolha parece entre o ruim e o pior, não haveria outra opção? Aponto a escolha que um profeta fez, alguém que entendia bem de sofrimento e dor. No livro de "Lamentações de Jeremias", no capítulo 3, o profeta lista uma série de mazelas que lhe ocorreram e de como ainda estavam vivas em sua lembrança. Entretanto, ele nem tenta esquecê-las, nem se prende à mera lembrança da dor. Ele oferece uma terceira via: "Torno a trazer isso a mente, portanto tenho esperança." (Lamentações de Jeremias 3.21). Contra toda a lógica, ele propõe que todo o sofrimento seja trazido à mente não para alimentar a amargura, mas a esperança. Nos versículos seguintes, temos uma das mais fabulosas "profissões de fé" da Bíblia. Claramente, podemos perceber a fé, fruto de amor incondicional por Deus, no texto do profeta.

Este é o nosso desafio: nos utilizarmos do sofrimento vivido para termos esperança em Deus. Talvez, uma esperança apenas no prazer do porvir, mas de qualquer forma a certeza de que "[...] os sofrimentos da vida presente não têm valor em comparação com a glória que há de ser revelada em nós." (Romanos 8.18 SBB). As recordações prazerosas nos ajudam a perceber que tivemos alegrias e contentamentos nesta existência. As lembranças de dor podem nos remeter à ignorância e inexperiência, à amargura e descrença... ou à esperança no porvir, que de certa forma gera um prazer, como nos recomenda Paulo: "Alegrai-vos na esperança" (Romanos 12.12a ARC). Que nossa alegria e prazer advenham sempre da confiança que, independente dos sofrimentos e problemas presentes, nosso Deus nos conforta e fortalece com a esperança de sua glória. Amém!

Comentários

  1. Fantástico!!! Jesus disse que o homem bom tira boas coisas do seu bom tesouro e o homem mau tira coisas más do seu tesouro mau. Mt12:35 e também disse que onde está o tesouro de um homem ai está o seu coração Mt6:21.

    As memórias são parte importantíssima da constituição humana, e saber lhe dar com elas é essencial: para a vida presente, e na tomada de decisões que nos permitirão construir memórias que pavimentem um caminho mais firme para o fim que nos propomos a alcançar.

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